Artistas trans se tornam donas de suas narrativas em espetáculo pioneiro em Manaus
Com estreia marcada para agosto,”Viper Paradise: O Amor é Tão Longe” é o primeiro espetáculo escrito, atuado e produzido por mulheres transgênero na capital amazonense
A Companhia Transversal de Artes Integradas (@ciatransversal) prepara a estreia de sua primeira peça de teatro autoral para os dias 8 e 9 de agosto de 2024, no Teatro da Instalação. “Viper Paradise: O Amor é Tão Longe”, primeiro espetáculo escrito, atuado e produzido integralmente por travestis em Manaus, abre discussão para as dificuldades enfrentadas pela população trans no processo de construir e manter afetos.
Sob coordenação das artistas transgênero Nicka e Lenine Charles, a companhia monta a peça a partir de texto de Lenine, vencedor do Concurso de Dramaturgia do XVII Festival de Teatro da Amazônia, em 2023. A classificação indicativa será de 14 anos.
Com uma proposta de discurso mais sensível, o espetáculo convida o público a confrontar temáticas já normalizadas em relação a pessoas trans. Depois de um ano acumulando repertório, Lenine criou a narrativa em torno do diálogo entre duas travestis que comparam suas experiências afetivas dentro de relacionamentos, no ambiente familiar e na convivência social, questionando a marginalização e o isolamento que sofreram ao longo da vida.
“A gente tem o objetivo de confrontar esse lugar de preterimento, de rejeição e de solidão que corpos trans vivenciam constantemente e coletivamente” contou Lenine.
Sob a direção de Felipe Maya Jatobá, a estética da peça é construída nos anos 80, período conhecido por elementos icônicos como cores vibrantes neon, estampas chamativas, ombreiras estruturadas e cabelos volumosos. Todo esse aparato funcionará como um grande convite ao público para estar presente com as personagens e acompanhar suas histórias. Lenine destaca ainda qual é o seu objetivo pessoal em comum com a companhia: “fazer com que sejamos compreendidas por quem quer que esteja na plateia”.
O espetáculo recebeu financiamento da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado do Amazonas (SEC-AM), após aprovação em edital da Lei Paulo Gustavo (LPG), em dezembro de 2023.
“Essa conquista resume não só todos os meus anos de trabalho, mas um movimento muito positivo em favor do protagonismo de pessoas que não costumam ter poder de voz em espaços culturais de Manaus,” define Lenine Charles.
Lutar pelo afeto também é lutar pela vida
De acordo com a multiartista, a luta enquanto pessoa trans se difere muito à luta de pessoas cisgênero que são gays, lésbicas ou bissexuais. “Uma frase que resume bem essa diferença é que eles lutam pelo direito de amar, nós lutamos pelo direito de existir”, explica.
“Não dá para fechar os olhos para a insegurança que vivemos aqui, nós ainda somos o país que mais mata pessoas trans em todo o mundo, então por que falar de solidão, porque reivindicar afeto quando somos privadas de direitos ainda mais básicos? Porque lutar pelo afeto também é lutar pela vida”, defende.
Logo no começo da carreira, em 2019, a falta de representatividade foi um dos fatores que chamaram a atenção de Lenine Charles. “Senti uma falta imensa de corpos como o meu acessando espaços, de histórias como a minha sendo contadas. Ainda temos muito chão a percorrer até que nossa presença seja normalizada nos lugares”, relembra a artista.
Em Manaus, com a Lei Paulo Gustavo, criada com o objetivo de incentivar e fomentar os segmentos culturais, projetos como da Companhia Transversal têm ganhado espaço. O edital prevê vagas a artistas e produtores culturais LGBTQIAPN+ na cidade. Essa é a primeira obra dramatúrgica de Lenine, que acredita que com oportunidades semelhantes a LPG, ainda mais travestis serão incentivadas a entrarem nos palcos, contar suas histórias expondo talento, protagonismo e qualidade de trabalho.
Direito de contar suas histórias
Fundadora da companhia, Nicka afirma que a vontade de reverter o quadro de escassez de oportunidades de trabalho é o que a move como artista. “Tive a necessidade de olhar para essa roda de apagamento de vidas como a minha, de corpos como o meu, e pensar como isso poderia mudar”.
A companhia Transversal surgiu em setembro de 2022 como resposta à pergunta em comum de Nicka e Lenine sobre como artistas transgênero poderiam mudar esse quadro com a própria força de trabalho ao mostrar sua arte e suas vivências.
A companhia conta com diversos experimentos cênicos, sendo o mais recente a cena curta “A Candidata” (2024), releitura do texto do dramaturgo Harold Pinter, adaptado para explicitar as dificuldades enfrentadas por pessoas trans ao encarar o mercado de trabalho, que estreou na IV Mostra Fissura, do Circuito de Teatro, Performatividade e Produção Cultural da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
A obra foi dirigida por Nicka e interpretada por Lenine Charles e Ana Júlia.
O grupo tem como propósito a profissionalização de corpos trans em Manaus, oferecendo espaços de atuação e criação de projetos nas áreas de teatro, produção audiovisual e literatura.