Crianças Yanomami morrem quase 10 vezes mais por causas evitáveis do que média nacional
Abandonados à própria sorte: “O que está ocorrendo é uma crise humanitária”, diz Yanomami sobre situação no território
Em 16 de setembro, a comunidade de Makabei, na Terra Indígena (TI) Yanomami, chorou a morte de uma criança de apenas 2 anos, que vamos chamar de M. Ela estava com malária, infectada pelo Plasmodium falciparum, o mais agressivo dos protozoários que causam a doença, e desenvolveu malária cerebral, uma complicação grave que, não raramente, leva à morte.
A morte de M. não é um caso isolado. Nos três primeiros anos do governo Bolsonaro (2019-2021), ao menos 14 crianças menores de 5 anos morreram em decorrência de malária na maior TI do país, localizada entre Amazonas e Roraima.
Os dados inéditos foram obtidos pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Considerando apenas 2019 e 2020, os últimos anos em que há dados nacionais disponíveis, foram oito mortes por malária na TI Yanomami, o equivalente a dois terços do total de óbitos nessa faixa etária em todo o Brasil, onde 12 crianças faleceram por complicações da doença.
Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY) e responsável por relatar o caso de M. à Pública, resume o processo de luto que uma morte como essa causa em seu povo. “Choram todos os dias, todas as noites. Toda a comunidade, não só a mãe, a família inteira. Ficam de luto, chorando, de manhã, de tarde, de noite. Ficam chorando durante meses”, explica o líder indígena, que preside também a Urihi Associação Yanomami.
A malária, que matou mais de uma dezena de crianças Yanomami e infectou milhares em três anos, está incluída em uma lista de “óbitos por causas evitáveis”, classificação que abrange doenças tratáveis, como pneumonia, desnutrição, diarreia e verminoses. Se considerarmos todas as mortes por causas evitáveis, o cenário na TI Yanomami se mostra ainda mais aterrador: entre 2019 e 2021, ao menos 429 crianças menores de 5 anos morreram no território indígena por causas que poderiam ter sido evitadas ou tratadas. É uma média de 143 a cada ano, sendo os dados de 2020 e 2021 ainda preliminares.
Para se ter uma dimensão do tamanho da tragédia entre os Yanomami, basta comparar as taxas nacionais com os números encontrados na TI. Entre 2019 e 2020, últimos anos com dados disponíveis em nível nacional, a taxa de óbitos evitáveis de crianças com menos de 5 anos no Brasil foi cerca de 260 a cada 100 mil habitantes, de acordo com informações obtidas no DataSUS. Na TI Yanomami, no mesmo período, a taxa foi de 2.400 mortes a cada 100 mil habitantes. São 9,2 vezes mais crianças que perderam a vida, de acordo com os dados obtidos via LAI pela reportagem.
Garimpo e ausência do Estado
“Quando uma criança indígena morre, assassinada pela ganância dos predadores do meio ambiente, uma parte da humanidade morre junto com ela”, disse o presidente eleito Lula (PT) em seu discurso de vitória após o segundo turno das eleições, em 30 de outubro. Na TI Yanomami, os mais de 20 mil garimpeiros “predadores do meio ambiente”, a ausência e a corrupção do poder público são apontadas como os principais responsáveis pela morte de centenas de crianças indígenas anualmente.
A cada contato feito pela reportagem com fontes Yanomami ou ligadas ao território ao longo dos últimos meses, uma mesma situação se repetiu. Além de atualizações verbais sobre o cenário na TI, cada diálogo vinha acompanhado de novas fotos que reforçam o que está ocorrendo na TI Yanomami.
São imagens quase sempre de crianças, extremamente magras, com os ossos à mostra e a barriga inchada. Algumas delas, como M., mencionada no início deste texto, estão no colo de suas mães, à beira da morte. Outras fotos revelam postos de saúde extremamente precários, onde dezenas de famílias se amontoam em redes, à espera de atendimento médico.
Uma das imagens recebidas pela Pública não mostra nenhuma criança, mas sim uma página de um caderno com anotações. Enviada pela liderança indígena Fernando Yanomami, o registro traz o nome de dez comunidades da região do Palimiú, acompanhado do número de mortes por doenças, especialmente malária, ocorridas em cada uma delas. São 74, entre crianças e adultos. Não é possível saber se todos os óbitos computados foram contabilizados oficialmente.
Em conversa com a reportagem, Fernando destaca a comunidade de Haxiu, que lidera a lista de óbitos, com 17 mortes, e explica os motivos que levaram a aldeia a esse cenário. “Sem saúde, sem rádio, muito sofrimento lá. Tem garimpo, muito garimpo, invasão mesmo. Rio contaminado, sujo, lama, barro mesmo. Muito sujo. Morreram”, diz.
Para Júnior Hekurari, da Urihi Associação Yanomami, o que está ocorrendo é uma “crise humanitária”. “Fome, malária, todos os Yanomami com malária. E malária pega com fome, é morte certa. É muito triste. Eu já várias vezes clamei ao governo para ajudar, mas a ajuda não está conseguindo chegar nas comunidades. As comunidades estão sem medicamentos, não tem ação permanente [de saúde]”, afirma a liderança indígena.
Na visão do médico e pesquisador Paulo Basta, trata-se de “um estado permanente de crise ambiental, social, sanitária, sob o ponto de vista de violação de direitos”. “É uma crise que vem progredindo de maneira a colocar os Yanomami numa situação ainda de maior vulnerabilidade com o crescimento do garimpo nas terras indígenas”, explica Basta, um dos responsáveis por uma série de estudos sobre os Yanomami conduzidos pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a Unicef.
Para ele, a violência dos garimpeiros criou um clima de medo no território, fazendo com que a Sesai não mais coloque profissionais de saúde em áreas de conflito conflagrado, deixando os indígenas “abandonados à própria sorte” e tendo que recorrer aos garimpeiros quando têm alguma questão emergencial.
“É claramente insuficiente o serviço de saúde prestado a essa população. A cobertura das unidades de saúde é baixa, a qualidade do atendimento é péssima. Não há infraestrutura local, não há medicamentos em quantidade e qualidade suficientes, não há insumos, não há equipamentos pra fazer procedimentos. Não há estrutura pra acolher pacientes com quadros graves, tampouco há estrutura pra fazer remoção desses pacientes pra unidades de saúde na cidade em tempo oportuno”, afirma o pesquisador.
Mortes por desnutrição
Em setembro de 2021, a Pública revelou que o índice de mortes por desnutrição na infância da TI Yanomami era o maior do país, com 24 mortes por desnutrição entre 2019 e 2020, na faixa etária de até 5 anos. Números atualizados mostram um cenário ainda pior: foram 29 óbitos, o que representa 7,7% do total de 374 mortes no país, mesmo com os Yanomami sendo cerca de 30 mil – apenas 0,013% da população brasileira.
Quando se considera o índice por 100 mil habitantes, as mortes por desnutrição na infância entre os Yanomami ocorreram 191 vezes mais do que a média nacional. A TI Yanomami contabiliza também pelo menos 14 crianças em 2021, ano que ainda não tem dados disponíveis em nível nacional.
Além disso, em 2021, 56,51% das 4.245 crianças Yanomami acompanhadas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y) tinham um quadro de desnutrição aguda (baixo ou baixíssimo peso para a idade). Em 20 dos 37 Polos Base do Dsei-Y, o índice era superior a 50%, chegando a 82,93% na região do Homoxi, uma das áreas onde o garimpo mais se expandiu nos últimos anos.
Os dados são ainda piores do que os apresentados no ano passado, referentes a 2019, quando 54,32% das crianças Yanomami apresentavam desnutrição aguda, com o índice passando de 50% em 18 dos 37 Polos Base. A título de comparação, dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) do Ministério da Saúde mostram que, em 2021, 4,27% das 4,5 milhões de crianças menores de 5 anos no Brasil tinham um quadro de desnutrição aguda.
A tragédia se repete quando se analisam outras moléstias. As mortes de crianças por pneumonia no Brasil foram cerca de 2.400 entre 2019 e 2020, sendo que 78 delas eram Yanomami, o equivalente a 3,2% do total – tendência que se manteve em 2021, quando ao menos 46 crianças do território indígena morreram em decorrência da doença. O índice é semelhante para mortes por diarreia: foram 26 em dois anos na TI Yanomami, 3,5% do total no Brasil.
Os dados obtidos mostram também que pelo menos oito crianças de 0 a 5 anos morreram por covid-19 na TI Yanomami entre 2020 e 2021.
Fraude na compra de medicamentos
Uma série de fatos ocorridos nas últimas semanas traduzem as razões pelas quais a TI Yanomami continua apresentando alguns dos piores índices de saúde do país.
Em 30 de novembro, a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público Federal (MPF) deflagraram a Operação Yoasi, visando combater um esquema de desvio de recursos públicos que deveriam ser destinados à compra de medicamentos para abastecer o Dsei-Y.
A fraude, de acordo com as investigações, teria se iniciado em outubro do ano passado, quando a empresa Balme Empreendimentos Ltda. firmou contrato com o Dsei-Y para o fornecimento de 90 tipos de remédios. Ao longo do último ano, porém, foram entregues menos de 30% dos medicamentos contratados. O esquema, que teria movimentado cerca de R$ 600 mil, envolve dois ex-coordenadores do Dsei Yanomami, Rômulo Pinheiro e o ex-vereador Ramsés Almeida da Silva, além de uma farmacêutica, um assessor de Ramsés e o empresário Roger Henrique Pimentel, dono da Balme Empreendimentos.
Entre os medicamentos afetados está o vermífugo albendazol, que é utilizado de maneira coletiva no tratamento de verminoses e que, por conta da fraude investigada, deixou de ser aplicado em mais de 10 mil crianças, de acordo com o MPF. A falta desse e de outros fármacos já vinha sendo denunciada pelos Yanomami pelo menos desde julho, quando a Hutukara Associação Yanomami divulgou carta relatando casos extremos de verminose, inclusive com crianças expelindo vermes pela boca. Há inclusive registros visuais da situação.
Fonte: Agencia Pública